quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A Filha do Tempo - Capítulo 2 - Em casa | parte 2

Para ler a parte 1 deste capítulo de A Filha do tempo clique aqui.

 



Na manhã seguinte, acordei me sentindo muito mal. Minha cabeça doía muito, parecia pesar umas 1000 toneladas. Fiquei deitada alguns minutos, ponderando se devia ou não contar pro meu pai. Eram seis da manhã, e com certeza minha mãe já havia ido trabalhar.

Como meu pai trabalha dia sim e dia não, a noite, ele já estava de pé, preparando meu café. Dava pra ouvir a barulhada que ele fazia na cozinha, assobiando (bem desafinado, para o terror dos meus ouvidos) “Eram cem ovelhas”. Ele adora essa música.


- Filha?
Eu acho que respondi algo como “hum... hã”, o que com certeza ele não ouviu. Ouvi seus passos aumentando de volume, conforme se aproximava da porta do meu quarto. Ele bateu na porta e a abriu, só uma frestinha, o suficiente para eu ouvir melhor.
- Deb?


- Oi pai – disse meio grogue.


- Ia perguntar se você está bem. Mas pelo visto...


Por mais que eu quisesse me mostrar disposta o suficiente pra ir pra escola (e me livrar da injeção), minha voz me entregava. Não convenceria nem minha cachorrinha, a Pipoca, muito menos meu pai.


- Posso entrar, filha?


Já que não tinha como escapar, resmunguei um “humrum” pra ele, que abriu a porta o suficiente para ele passar, sem que a claridade do mundo exterior ao meu aconchegante quartinho pudesse entrar. Por experiências própria, nem um pouco agradáveis à saúde dos meus irmãos, minha família aprendeu que é melhor me acordar aos poucos, sem pressa, situações que me deixam um pouco... estressada, digamos, pelo resto do dia (ou dias).


Ele sentou na minha cama, que ficava com a cabeceira em baixo da janela. Colocou a mão na minha testa para ver se eu estava com febre. Ele tirou a mão, franziu as sobrancelhas e colocou a mão novamente.


- Estranho...


Já comecei a ficar com medo. Quando meu pai não sabe o que é, ele costuma recomendar benzectacil para os médios recomendarem pra nós, pobres e indefesas vítimas das agulhas hospitalares.


- O que é pai?


- Sua testa está gelada. Está com frio?


- Não. Estou com uma dor de cabeça enorme, do tamanho de um tiranossauro, mas não estou com frio, não.


Ele segurou minhas mãos e olhou pra mim preocupado. A essa altura, eu acho que iam rolar uma duas injeções, no mínimo.


- Acho melhor irmos ao médico. Não é normal ficar tão gelada assim.
- Mas pai...


- Filha, é pro seu bem. É melhor do que você piorar, e ter que passar mais tempo no médico do que passaria se formos agora, que o sintoma está começando.


Infeliz mas já conformada, acabei cedendo. Quer dizer, concordando, já que eu teria que ir ao médico feliz ou não.


- Ta bom pai.


Ele sorriu, encorajador.


- Será rápido, prometo. Depois, que tal passarmos no Português e comermos aquele x-salada que você adora?


Bom, esse era o lado positivo de ir ao médico com papai. Ele sempre recompensava a gente indo a algum lugar que gostamos. Normalmente, meus irmãos e eu escolhemos ir ao MC Donald’s, mas como eles iriam pra escola, eu topava um x-salada do Português.


Consegui dar um sorriso pro meu pai, mas estava claramente desanimada por causa do médico e da possível injeção.


- Essa é a minha garota. Agora, tenta ir pro banho. Deixa a água quentinha cair sobre a cabeça. Quem sabe não melhora?


- Se melhorar, posso não ir ao médico e comer o x-salada mesmo assim?


Ele ergueu as sobrancelhas e riu. Bagunçou meu cabelo e se levantou. Olhou pra mim outra vez e tornou a rir. Virou-se e foi pra cozinha dizendo, entre uma risada e outra: “essas crianças”.


Me levantei e fui pro banho. Realmente, assim como meu pai disse, a água quente ajudou a melhorar um pouco a dor de cabeça. Mas ainda parecia que eu tinha carregado uma montanha em cima da cuca.


Escolhi uma roupa simples, calça jeans, blusinha do Sr. Madruga (ele é o cara) e sapatilha preta. Depois de pentear o cabelo, fui pra cozinha. Meus irmãos já estavam tomando café (menos a Carolzinha, que estuda a tarde e, por conseqüência, acorda mais tarde).


- Oi Deb – disse o André. – Está melhor hoje?


- To sim Gão – é assim que chamamos ele em casa, não me pergunte o porque.


- Que bom – disse a Pri. – Porque hoje temos vôlei a noite, lembra?


É lógico que não me lembrava, afinal, meus neurônios estavam todos ocupados, se esforçando pra manter minha cabeça funcionando. Mas o jogo era só a noite, então talvez eu pudesse ir. Mas, meu pai não compartilhava do meu otimismo.


- Sua irmã não está bem Pri. Acho que hoje, ela não poderá jogar.


Como eu disse, esqueça o jogo. Nem queria ir mesmo.


- Está na hora de vocês irem – disse papai. – Eu levarei sua irmã pro pronto-socorro. A comida está separada nos potes. É só chegar e esquentar.


- Ta bom pai, deixa que eu cuido disso – disse a Pri.


- Ótimo. Não deixem a Carolzinha sair sem comer nada. Ela precisa almoçar.


O André acenou com a cabeça, mostrando que tinha entendido. Ele e a Pri se despediram de nós e foram para a escola. O André estudava no Possidônio, a apenas três quarteirões de casa. A Pri estudava na mesma sala que eu, pois quando abriu as inscrições para estudar na Embraer, ela estava no nono ano e eu no primeiro do fundamental. Resolvi voltar um ano, pra ter um ensino melhor. Acabei na sala da minha irmã, o que era muito bom.


Nós ficávamos uns dez minutos no ponto, esperando o ônibus da escola, e o André esperava uns quinze minutos pra abrir o portão. Sei que é estranho chegar tão cedo, mas meu pai sempre nos ensinou que é melhor estar bem adiantado do que um pouco atrasado, então sempre saíamos com tempo de sobra antes do horário da aula começar.


- Pronta filha?


Sem ter pra onde correr, fiz o óbvio. Resmunguei.


- Pronta pai... Sabe, eu gostaria que o tempo se adiantasse pra hora em que vamos comer o x-salada.


Foi então que tudo ficou esquisito.


Uma luz muita estranha surgiu do nada, me cegando por uns instantes. Eu vi vários borrões passarem na minha frente, muita gente falando coisas indecifráveis, ruídos, barulhos estranhos.
E uns cinco segundos depois, eu estava sentada no balcão do Português, com meu pai do lado. O Português é uma padaria que fica no centro de São José dos Campos. É uma das mais bonitas ( e mais caras) da cidade, e tem a melhor promoção de x-salada da cidade: Compre um x-salada por R$ 3,00 e ganhe um refrigerante da linha Coca-Cola.


Olhei em volta meio assustada, e quando me virei no banquinho pra ver do lado, minha “almofada” direita estava doendo horrores, assim como minha perna do mesmo lado.


- Ai!


- O que foi Deb? Onde está doendo?


Sem graça, vi que meu “ai” atraiu o interesse dos clientes e funcionários mais próximos. Morrendo de vergonha, eu tentei disfarçar, esperando que meu pai entendesse e não desse um fora.


- Minha... hã... perna.


- Ah! Sim! Bem... é só não inventar de ir ao vôlei hoje que amanhã estará tudo certo.


Graças a Deus ele entendeu. A última coisa que eu precisava era meu pai falando no meio da padaria sobre injeção nas “ancas”, como ele costuma chamar o popô. Ia ser um senhor King Kong.


- Então ... o que fazemos aqui?


Meu pai fez cara de não entender nada.


- Bom... disse que traria você pra comer o x-salada, depois do médico. E aqui estamos.


O médico... Claro! Eu ia ao médico. Mas porque será que... eu já tinha ido ao médico?
Tinha que pensar com clareza, mas pra isso precisava distrair meu pai. Eu não sabia se ele já tinha ou não pedido os lanches, então, tive que inventar algo que me salvaria de uma montanha de perguntas.
- Pai, o senhor já pediu?


Ele fez cara de preocupado. Levou um tempo até responder, mas eu já esperava por isso. Na verdade, contava com isso.


- Deb, você me viu pedindo o lanche. Já deve estar pronto. Tem certeza que está...


- Não pai! As carolinas!


- Carolinas?


Carolina é o nome do meu doce favorito. E no Português, eles faziam a melhor carolina da cidade. Modéstia a parte, o meu tio Daniel era o padeiro, então, não tinha como ficar ruim. Foi graças a esse doce que minha irmã mais nova tem o nome de Carolina. Fui eu quem escolheu.


- Isso! Esqueceu que sempre como uma ou duas carolinas antes do lanche?


Meu pai não estava entendendo nada, porque na verdade, eu nunca peço carolina antes do lanche, mas uma vez já tinha feito isso, quando o lanche demorou muito. Vendo que meu pai estava confuso, aproveitei a chance.


- Pega pai, umas trezentas gramas de Carolina pra mim.


- Ah...


- Vai pai, senão o lanche chega.


Sem entender muito bem minha urgência com o doce, ele foi pro balcão de pão comprar as benditas carolinas.


Agora que ele estava longe, pude a pensar com calma. Por mais estranho que pareça, eu me lembrei de tudo que aconteceu. A ida ao médico, a injeção, meu desmaio quando vi a agulha (qualé, já disse que tenho trauma), saindo de estacionamento do pronto-socorro, a entrada no Português.


Eu lembrava de tudo. Era como se eu tivesse dado um salto no tempo, como se eu tivesse vivido todas aquelas experiências, que levariam horas, em poucos segundos. Mas as lembranças eram um pouco confusas, borradas.


Mas não tinha como negá-las. Eu tinha a prova bem ali, no meu popô. O lado em que tomei a injeção doía pra caramba, como se fosse rachar. Aquela dor era específica, pois só benzectacil pode deixar minha perna assim, como se pegasse fogo.


Mas como será que isso aconteceu? Bom, eu teria que esperar chegar em casa pra pensar sossegada sobre isso. Meu pai voltava com as carolinas, e os lanches e refrigerantes chegaram. Tive que comer um dos doces antes do lanche (como se isso fosse realmente um sacrifício) pra tentar não levantar mais suspeitas, mas meu pai já estava cismado.


Enquanto comíamos, ele me olhava de rabo de olho, e eu sabia que tava tentando entender o que tava acontecendo comigo. Pelo que me lembrava, o médico não disse coisa com coisa, e quem sugeriu a injeção (como sempre), fora meu pai.


Por hora era melhor terminar o lanche e ir embora pra casa. Eu tava começando a ficar com muito sono, e tinha certeza que poderia dormir a tarde inteira.


- Sabe filha... se você não estiver bem amanhã, pode faltar.


- Brigada pai, mas não posso. Já faltei hoje, e com certeza tem muita matéria pra copiar.


- Quanto a matéria, eu não posso fazer nada. Mas quanto à falta... bem, eu voltei pra falar com o médico enquanto você estava... você sabe.


Corei. Pelo que me lembrava, eu devo ter feito um espetáculo e tanto. E com certeza eu desmaiei. Eu sempre desmaio quando tomo injeção.


- Certo – disse constrangida. – E...?


- E peguei um atestado de dispensa pra você para o resto da semana.


Eu olhei pasma para o meu pai, com os olhos arregalados. Pra você entender: meu pai é o defensor número um de nunca faltar na escola. Quando era pequeno, ele não pode completar seus estudos, pois teve que trabalhar pra sustentar a casa. Então, acho que essa é a maneira dele mostrar que se importa e quer que consigamos o que ele não pode.


Quando ele disse que pegou o atestado pra mim, bem, era quase a mesma coisa de dizer que no nosso bairro agora passava uma linha de ônibus com ponto final em marte. Tipo, impossível.
Não sei se era por causa da injeção, ou foi só o fato de meu pai quebrar suas próprias regras por mim, mas meus olhos encheram de lágrimas. Dei o maior sorriso que pudia dar pra ele, e ele me deu outro de volta, meio tímido. Ele é uma figurinha quando fica com vergonha. Abracei ele bem forte e dei um beijão nele.


- Vamos fazer assim – disse pro meu pai, - eu chego em casa e vejo com a Pri se tem muita tarefa ou alguma matéria nova pra amanhã. Se não tiver e eu realmente não melhorar, eu fico em casa. Se não, eu vou normal, para não ficar tão atrasada.


Ele olhou pra mim e seu peito se encheu de orgulho. Me descabelou e ficou murmurando coisas como “essa é a minha menina” e “assim você vai ter um grande futuro” e blá, blá, blá.


Terminamos o lanche, e fomos pro carro. No caminho de volta, meu pai colocou na Rádio Vida, onde estava passando um especial de hinos da Harpa Cristã. Ele ficou lá, cantarolando as músicas, que eram suas preferidas. Eu fiquei fitando a paisagem da cidade. Adoro São José dos Campos.


Quando chegamos em casa, meu pai foi conversar com o Véio do Côco, um senhor que mora na rua de casa e fica na esquina, em frente da farmácia com um carrinho, vendendo água de côco.


Eu entrei, e como faltava ainda umas duas horas pro almoço, subi pro meu quarto e fui dar um cochilo.

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