Na manhã seguinte, acordei me sentindo muito mal. Minha cabeça doía muito, parecia pesar umas 1000 toneladas. Fiquei deitada alguns minutos, ponderando se devia ou não contar pro meu pai. Eram seis da manhã, e com certeza minha mãe já havia ido trabalhar.
Como
meu pai trabalha dia sim e dia não, a noite, ele já estava de pé,
preparando meu café. Dava pra ouvir a barulhada que ele fazia na
cozinha, assobiando (bem desafinado, para o terror dos meus ouvidos)
“Eram cem ovelhas”. Ele adora essa música.
- Filha?
Eu
acho que respondi algo como “hum... hã”, o que com certeza ele não
ouviu. Ouvi seus passos aumentando de volume, conforme se aproximava da
porta do meu quarto. Ele bateu na porta e a abriu, só uma frestinha, o
suficiente para eu ouvir melhor.
- Deb?
- Oi pai – disse meio grogue.
- Ia perguntar se você está bem. Mas pelo visto...
Por
mais que eu quisesse me mostrar disposta o suficiente pra ir pra escola
(e me livrar da injeção), minha voz me entregava. Não convenceria nem
minha cachorrinha, a Pipoca, muito menos meu pai.
- Posso entrar, filha?
Já
que não tinha como escapar, resmunguei um “humrum” pra ele, que abriu a
porta o suficiente para ele passar, sem que a claridade do mundo
exterior ao meu aconchegante quartinho pudesse entrar. Por experiências
própria, nem um pouco agradáveis à saúde dos meus irmãos, minha família
aprendeu que é melhor me acordar aos poucos, sem pressa, situações que
me deixam um pouco... estressada, digamos, pelo resto do dia (ou dias).
Ele
sentou na minha cama, que ficava com a cabeceira em baixo da janela.
Colocou a mão na minha testa para ver se eu estava com febre. Ele tirou a
mão, franziu as sobrancelhas e colocou a mão novamente.
- Estranho...
Já
comecei a ficar com medo. Quando meu pai não sabe o que é, ele costuma
recomendar benzectacil para os médios recomendarem pra nós, pobres e
indefesas vítimas das agulhas hospitalares.
- O que é pai?
- Sua testa está gelada. Está com frio?
- Não. Estou com uma dor de cabeça enorme, do tamanho de um tiranossauro, mas não estou com frio, não.
Ele segurou minhas mãos e olhou pra mim preocupado. A essa altura, eu acho que iam rolar uma duas injeções, no mínimo.
- Acho melhor irmos ao médico. Não é normal ficar tão gelada assim.
- Mas pai...
-
Filha, é pro seu bem. É melhor do que você piorar, e ter que passar
mais tempo no médico do que passaria se formos agora, que o sintoma está
começando.
Infeliz mas já conformada, acabei cedendo. Quer dizer, concordando, já que eu teria que ir ao médico feliz ou não.
- Ta bom pai.
Ele sorriu, encorajador.
- Será rápido, prometo. Depois, que tal passarmos no Português e comermos aquele x-salada que você adora?
Bom,
esse era o lado positivo de ir ao médico com papai. Ele sempre
recompensava a gente indo a algum lugar que gostamos. Normalmente, meus
irmãos e eu escolhemos ir ao MC Donald’s, mas como eles iriam pra
escola, eu topava um x-salada do Português.
Consegui dar um sorriso pro meu pai, mas estava claramente desanimada por causa do médico e da possível injeção.
- Essa é a minha garota. Agora, tenta ir pro banho. Deixa a água quentinha cair sobre a cabeça. Quem sabe não melhora?
- Se melhorar, posso não ir ao médico e comer o x-salada mesmo assim?
Ele
ergueu as sobrancelhas e riu. Bagunçou meu cabelo e se levantou. Olhou
pra mim outra vez e tornou a rir. Virou-se e foi pra cozinha dizendo,
entre uma risada e outra: “essas crianças”.
Me
levantei e fui pro banho. Realmente, assim como meu pai disse, a água
quente ajudou a melhorar um pouco a dor de cabeça. Mas ainda parecia que
eu tinha carregado uma montanha em cima da cuca.
Escolhi
uma roupa simples, calça jeans, blusinha do Sr. Madruga (ele é o cara) e
sapatilha preta. Depois de pentear o cabelo, fui pra cozinha. Meus
irmãos já estavam tomando café (menos a Carolzinha, que estuda a tarde
e, por conseqüência, acorda mais tarde).
- Oi Deb – disse o André. – Está melhor hoje?
- To sim Gão – é assim que chamamos ele em casa, não me pergunte o porque.
- Que bom – disse a Pri. – Porque hoje temos vôlei a noite, lembra?
É
lógico que não me lembrava, afinal, meus neurônios estavam todos
ocupados, se esforçando pra manter minha cabeça funcionando. Mas o jogo
era só a noite, então talvez eu pudesse ir. Mas, meu pai não
compartilhava do meu otimismo.
- Sua irmã não está bem Pri. Acho que hoje, ela não poderá jogar.
Como eu disse, esqueça o jogo. Nem queria ir mesmo.
-
Está na hora de vocês irem – disse papai. – Eu levarei sua irmã pro
pronto-socorro. A comida está separada nos potes. É só chegar e
esquentar.
- Ta bom pai, deixa que eu cuido disso – disse a Pri.
- Ótimo. Não deixem a Carolzinha sair sem comer nada. Ela precisa almoçar.
O
André acenou com a cabeça, mostrando que tinha entendido. Ele e a Pri
se despediram de nós e foram para a escola. O André estudava no
Possidônio, a apenas três quarteirões de casa. A Pri estudava na mesma
sala que eu, pois quando abriu as inscrições para estudar na Embraer,
ela estava no nono ano e eu no primeiro do fundamental. Resolvi voltar
um ano, pra ter um ensino melhor. Acabei na sala da minha irmã, o que
era muito bom.
Nós
ficávamos uns dez minutos no ponto, esperando o ônibus da escola, e o
André esperava uns quinze minutos pra abrir o portão. Sei que é estranho
chegar tão cedo, mas meu pai sempre nos ensinou que é melhor estar bem
adiantado do que um pouco atrasado, então sempre saíamos com tempo de
sobra antes do horário da aula começar.
- Pronta filha?
Sem ter pra onde correr, fiz o óbvio. Resmunguei.
- Pronta pai... Sabe, eu gostaria que o tempo se adiantasse pra hora em que vamos comer o x-salada.
Foi então que tudo ficou esquisito.
Uma
luz muita estranha surgiu do nada, me cegando por uns instantes. Eu vi
vários borrões passarem na minha frente, muita gente falando coisas
indecifráveis, ruídos, barulhos estranhos.
E
uns cinco segundos depois, eu estava sentada no balcão do Português,
com meu pai do lado. O Português é uma padaria que fica no centro de São
José dos Campos. É uma das mais bonitas ( e mais caras) da cidade, e
tem a melhor promoção de x-salada da cidade: Compre um x-salada por R$
3,00 e ganhe um refrigerante da linha Coca-Cola.
Olhei
em volta meio assustada, e quando me virei no banquinho pra ver do
lado, minha “almofada” direita estava doendo horrores, assim como minha
perna do mesmo lado.
- Ai!
- O que foi Deb? Onde está doendo?
Sem
graça, vi que meu “ai” atraiu o interesse dos clientes e funcionários
mais próximos. Morrendo de vergonha, eu tentei disfarçar, esperando que
meu pai entendesse e não desse um fora.
- Minha... hã... perna.
- Ah! Sim! Bem... é só não inventar de ir ao vôlei hoje que amanhã estará tudo certo.
Graças
a Deus ele entendeu. A última coisa que eu precisava era meu pai
falando no meio da padaria sobre injeção nas “ancas”, como ele costuma
chamar o popô. Ia ser um senhor King Kong.
- Então ... o que fazemos aqui?
Meu pai fez cara de não entender nada.
- Bom... disse que traria você pra comer o x-salada, depois do médico. E aqui estamos.
O médico... Claro! Eu ia ao médico. Mas porque será que... eu já tinha ido ao médico?
Tinha
que pensar com clareza, mas pra isso precisava distrair meu pai. Eu não
sabia se ele já tinha ou não pedido os lanches, então, tive que
inventar algo que me salvaria de uma montanha de perguntas.
- Pai, o senhor já pediu?
Ele fez cara de preocupado. Levou um tempo até responder, mas eu já esperava por isso. Na verdade, contava com isso.
- Deb, você me viu pedindo o lanche. Já deve estar pronto. Tem certeza que está...
- Não pai! As carolinas!
- Carolinas?
Carolina
é o nome do meu doce favorito. E no Português, eles faziam a melhor
carolina da cidade. Modéstia a parte, o meu tio Daniel era o padeiro,
então, não tinha como ficar ruim. Foi graças a esse doce que minha irmã
mais nova tem o nome de Carolina. Fui eu quem escolheu.
- Isso! Esqueceu que sempre como uma ou duas carolinas antes do lanche?
Meu
pai não estava entendendo nada, porque na verdade, eu nunca peço
carolina antes do lanche, mas uma vez já tinha feito isso, quando o
lanche demorou muito. Vendo que meu pai estava confuso, aproveitei a
chance.
- Pega pai, umas trezentas gramas de Carolina pra mim.
- Ah...
- Vai pai, senão o lanche chega.
Sem entender muito bem minha urgência com o doce, ele foi pro balcão de pão comprar as benditas carolinas.
Agora
que ele estava longe, pude a pensar com calma. Por mais estranho que
pareça, eu me lembrei de tudo que aconteceu. A ida ao médico, a injeção,
meu desmaio quando vi a agulha (qualé, já disse que tenho trauma),
saindo de estacionamento do pronto-socorro, a entrada no Português.
Eu
lembrava de tudo. Era como se eu tivesse dado um salto no tempo, como
se eu tivesse vivido todas aquelas experiências, que levariam horas, em
poucos segundos. Mas as lembranças eram um pouco confusas, borradas.
Mas
não tinha como negá-las. Eu tinha a prova bem ali, no meu popô. O lado
em que tomei a injeção doía pra caramba, como se fosse rachar. Aquela
dor era específica, pois só benzectacil pode deixar minha perna assim,
como se pegasse fogo.
Mas
como será que isso aconteceu? Bom, eu teria que esperar chegar em casa
pra pensar sossegada sobre isso. Meu pai voltava com as carolinas, e os
lanches e refrigerantes chegaram. Tive que comer um dos doces antes do
lanche (como se isso fosse realmente um sacrifício) pra tentar não
levantar mais suspeitas, mas meu pai já estava cismado.
Enquanto
comíamos, ele me olhava de rabo de olho, e eu sabia que tava tentando
entender o que tava acontecendo comigo. Pelo que me lembrava, o médico
não disse coisa com coisa, e quem sugeriu a injeção (como sempre), fora
meu pai.
Por
hora era melhor terminar o lanche e ir embora pra casa. Eu tava
começando a ficar com muito sono, e tinha certeza que poderia dormir a
tarde inteira.
- Sabe filha... se você não estiver bem amanhã, pode faltar.
- Brigada pai, mas não posso. Já faltei hoje, e com certeza tem muita matéria pra copiar.
-
Quanto a matéria, eu não posso fazer nada. Mas quanto à falta... bem,
eu voltei pra falar com o médico enquanto você estava... você sabe.
Corei.
Pelo que me lembrava, eu devo ter feito um espetáculo e tanto. E com
certeza eu desmaiei. Eu sempre desmaio quando tomo injeção.
- Certo – disse constrangida. – E...?
- E peguei um atestado de dispensa pra você para o resto da semana.
Eu
olhei pasma para o meu pai, com os olhos arregalados. Pra você
entender: meu pai é o defensor número um de nunca faltar na escola.
Quando era pequeno, ele não pode completar seus estudos, pois teve que
trabalhar pra sustentar a casa. Então, acho que essa é a maneira dele
mostrar que se importa e quer que consigamos o que ele não pode.
Quando
ele disse que pegou o atestado pra mim, bem, era quase a mesma coisa de
dizer que no nosso bairro agora passava uma linha de ônibus com ponto
final em marte. Tipo, impossível.
Não
sei se era por causa da injeção, ou foi só o fato de meu pai quebrar
suas próprias regras por mim, mas meus olhos encheram de lágrimas. Dei o
maior sorriso que pudia dar pra ele, e ele me deu outro de volta, meio
tímido. Ele é uma figurinha quando fica com vergonha. Abracei ele bem
forte e dei um beijão nele.
-
Vamos fazer assim – disse pro meu pai, - eu chego em casa e vejo com a
Pri se tem muita tarefa ou alguma matéria nova pra amanhã. Se não tiver e
eu realmente não melhorar, eu fico em casa. Se não, eu vou normal, para
não ficar tão atrasada.
Ele
olhou pra mim e seu peito se encheu de orgulho. Me descabelou e ficou
murmurando coisas como “essa é a minha menina” e “assim você vai ter um
grande futuro” e blá, blá, blá.
Terminamos
o lanche, e fomos pro carro. No caminho de volta, meu pai colocou na
Rádio Vida, onde estava passando um especial de hinos da Harpa Cristã.
Ele ficou lá, cantarolando as músicas, que eram suas preferidas. Eu
fiquei fitando a paisagem da cidade. Adoro São José dos Campos.
Quando
chegamos em casa, meu pai foi conversar com o Véio do Côco, um senhor
que mora na rua de casa e fica na esquina, em frente da farmácia com um
carrinho, vendendo água de côco.
Eu entrei, e como faltava ainda umas duas horas pro almoço, subi pro meu quarto e fui dar um cochilo.
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